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Uma Crônica Histórica sobre como o "Sonho Americano" sempre foi para poucos

Crítica: First Cow

Arthur Pereira


O novo longa-metragem de Kelly Reichardt, distribuído pela A24 e produzido pela IAC Films e filmscience, é uma joia escondida. O filme mostra dois amigos “empreendedores” tentando crescer socialmente e ter uma vida melhor no período das primeiras colonizações no oeste dos Estados Unidos. John Magaro dá vida a Cookie, um cozinheiro americano dócil, carinhoso e prestativo, que conhece o imigrante chinês King Lu (interpretado por Orion Lee). A partir disso, a chegada da primeira vaca na região é o catalisador para todas as situações que ocorrem na história, sendo que é a partir do leite dela que Cookie consegue fazer bolinhos e lucrar.


O filme começa com um prólogo que já entrega o final da obra que veremos nas próximas duas horas. Essa decisão ousada (mas muito efetiva) cria uma sensação de inevitabilidade da morte inerente à existência e, ao mesmo tempo, é esquecida enquanto acompanhamos os momentos de companheirismo e alegria dos dois amigos em vida.


A primeira metade do longa-metragem é demasiadamente lenta e pouco interessante. Todavia, a partir do momento que o espectador desenvolve uma conexão com os protagonistas e a linha narrativa é construída, a obra mostra sua força mesmo mantendo o ritmo quase sempre contemplativo. Assim, First Cow se sobressai aliando elementos de diferentes gêneros cinematográficos, como western, suspense e o cinema independente, com uma reflexão irônica sobre amizade, vingança e capitalismo.


Desse modo, o cinema realista e minimalista de Reichardt possui características marcantes claramente vistas no filme em pauta, como as referências a debates políticos (podendo ter aqui papel significativo na questão dos imigrantes nos Estado Unidos durante a administração Trump), os pequenos personagens vivendo pequenas histórias e finais ambíguos, deixando o espectador chegar em suas próprias conclusões. Além disso, Reichardt é responsável pela montagem e edição da maior parte de seus trabalhos e aqui não é diferente: a diretora possui controle total do ritmo e do tempo empregado naquele recorte da vida dos protagonistas.


É importante ressaltar o ótimo texto, adaptado do romance The Half Life, de Jon Raymond (que co-escreve o longa com Reichardt), que é estruturado na ausência de diálogos expositivos, ressaltando pequenos gestos e olhares (como na cena em que Cookie entra na casa de King Lu pela primeira vez e começa a organizá-la) e linhas de diálogo (como nas brilhantes cenas em que Cookie ordenha a vaca mencionada no título) que demonstram a personalidade dos personagens.


Um dos pontos mais fortes da obra é a fotografia de Christopher Blauvelt, que usa o formato da tela em 3:4 com êxito para apresentar essa América cheia de promessas. Ademais, a paleta de cores esverdeada e alaranjada transforma a própria floresta em um personagem ativo na trama.


A diretora assume mais uma vez um papel avant garde e vai na direção contrária do mainstream em um filme inteligente e aterrador. Confesso que minutos antes do fim da exibição refletia sobre qual seria a melhor forma de finalizar aquela jornada pré-conhecida pelo espectador e Kelly ao fazer o mais simples, impacta o máximo possível. Não existe um clímax no longa, ou melhor, ele ocorre quando as luzes se apagam e a diretora te joga no vazio junto com aqueles heróis.


Diante disso, a história do filme é simples, pequena e muito boa. O início monótono e até maçante bate de frente com a precisão da diretora para contar uma crônica às vezes bem-humorada e em sua maior parte melancólica. Através de um olhar observador e cuidadoso, Reichardt apresenta aqueles que não foram lembrados pela história, honrando a memória de milhares de “Cookies” e “Kings Lu” que nasceram, viveram e morreram às margens da sociedade; mostrando ao final como a irmandade surge nos locais mais inesperados.


Nota: 4/5 Lágrimas



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