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Não há terror maior que o amor

Crítica: A Maldição da Mansão Bly (2020)

Gustavo Fernandes


Em 2018, fãs de terror foram arrebatados pela densa A Maldição da Residência Hill, minissérie da Netflix criada por Mike Flanagan e produzida pela Paramount Television. O público foi positivamente surpreendido por um rico drama familiar que se encontra com o terror ao destrinchar o psicológico de cada ente da família Crain. Com o anúncio de uma continuação antológica para a aclamada minissérie, foi difícil conter as expectativas, assim como as praticamente inevitáveis comparações com a primorosa temporada anterior. Nesse contexto, A Maldição da Mansão Bly aterriza cerceada pela forte pressão de ter que honrar o legado de sua antecessora, tendo como inspiração a cultuada novela A Volta do Parafuso (The Turn of the Screw, 1898), de Henry James.


A trama acompanha a jovem Dani (Victoria Pedretti) tendo que se mudar para a Mansão Bly, no interior da Inglaterra, a fim de cuidar de dois órfãos, Flora (Amelia Bea Smith) e Miles (Benjamin Evan Ainsworth). Pouco tempo após a mudança, Dani passa a perceber que há algo de errado com a residência e com os irmãos de quem deve cuidar. A estranheza do local acaba dialogando com o âmago do emocional de Dani, profundamente abalado por uma perda inicialmente desconhecida pelo público. Com o tempo, no entanto, o espectador vai tendo contato com as camadas que compõem a personagem, assim como com as facetas dos outros personagens com quem ela se relaciona.


Logo no início do primeiro episódio, o espectador conhece o principal alicerce temático da minissérie: A perda de um ente querido. Pincelado por Residência Hill, o luto figura como o mais forte pilar narrativo de Mansão Bly. Ao longo dos nove episódios, o público tem contato com as diversas variáveis do sentimento: a perda de um par romântico, a perda de um familiar, e até mesmo a perda de si próprio. A minissérie propõe uma perspectiva de análise do luto como fonte de medo e horror praticamente inevitáveis, uma vez que ele é inevitável por si só, a partir do desenvolvimento de algum vínculo afetivo, qualquer que seja. Portanto, não há escapatória: Mais cedo ou mais tarde, o terror da perda nos alcançará. E o maior êxito de Mansão Bly é justamente sua abordagem de como o trauma afeta os indivíduos, ressoando na percepção do mundo exterior, e mesmo de si próprios.


Apesar de narrar uma nova história e de contar com a direção de Mike Flanagan apenas no primeiro episódio, Mansão Bly possui fortes semelhanças com sua antecessora. Assim como no primeiro ano, a minissérie possui uma estrutura narrativa majoritariamente calcada na individualidade de seus personagens, dedicando boa parte dos episódios a cada um deles individualmente, embora de forma menos ritmada. É interessante como, assim como no ano anterior, a minissérie busca o aprofundamento de um núcleo familiar. Dessa vez, no entanto, não se trata de uma família consanguínea propriamente dita, mas de indivíduos unidos por serviços prestados a uma. A direção também não busca distanciar-se de Residência Hill, preservando a suavidade dos movimentos de câmera e a paciência ao explorar os cenários.


A direção de fotografia, por sua vez, encontra certa identidade em relação à presente na minissérie antecessora. Enquanto A Maldição da Residência Hill é marcada por um forte filtro amarelo-esverdeado, A Maldição da Mansão Bly trabalha com uma coloração mais sutil e menos característica, embora pouco saturada. O que aproxima os departamentos de cinematografia de ambas as minisséries é o “blur” empregado constantemente sobre a imagem, transmitindo a sensação de que o espectador está assistindo a uma memória antiga e já em processo de esquecimento.


Um dos maiores trunfos da nova minissérie é seu elenco. Victoria Pedretti já havia mostrado seu potencial ao encarnar a melancólica Nell em Residência Hill, e entregou uma performance tão poderosa e emblemática quanto em Mansão Bly. O rico leque de emoções que marca a jornada de Dani ao longo dos episódios, é transmitido com força e expressividade pela jovem atriz. As crianças intérpretes dos órfãos também não decepcionam: Amelia Bea Smith transmite toda doçura e simpatia de Flora ao encarnar a personagem, enquanto Benjamin Evan Ainsworth é exitoso ao dar vida ao sombrio Miles. Outros intérpretes que fisgam o espectador e permanecem no coração do público após o término da minissérie, são as excelentes T'Nia Miller e Amelia Eve. Dentre as preciosidades já vistas em Residência Hill, figuram Oliver Jackson-Cohen e Carla Gugino - essa, responsável por algumas das cenas mais emocionantes da minissérie.


A maior fragilidade de Mansão Bly está na disposição narrativa de seu enredo. A série definitivamente não facilita a vida do espectador, sendo marcada por constante alternância de pontos de vista e saltos temporais, apesar de contar uma história quase completamente linear. O maior equívoco narrativo da minissérie é a incorporação de mais elementos do que deveria. Enquanto o primeiro ano da série mantém os pés firmes no chão em relação à ambição narrativa, conseguindo distribuir os arcos individuais dos personagens de forma orgânica numa estrutura relativamente simples, a nova temporada não busca estabelecer um padrão narrativo tão rígido, empregando diversos elementos de forma aparentemente desordenada e desigual.


Mansão Bly já aterriza na Netflix cercada por altas expectativas, tendo em vista o alto patamar alcançado por Residência Hill. A tarefa de elevar o terror psicológico ao drama familiar e desvelar os fantasmas advindos das vivências pessoais, foi cumprida com êxito no primeiro ano da série, e o mesmo pode ser dito em relação a sua segunda temporada. A densa trama costurada pela nova minissérie pode não ser tão instigante quanto sua antecessora, mas isso não a faz desonrar seu legado. Caso a série continue com mais adaptações de outros clássicos do gênero, ou mesmo que invista em histórias originais, as perspectivas de futuro são as mais otimistas, haja vista a indubitável grandiosidade apresentada pelos dois primeiros anos. Pode-se dizer que “A Maldição” já é uma das séries mais certeiras e espirituosas da década, penetrando o âmago do espectador com força imensurável, assim como os intensos sentimentos que busca desvelar em suas temporadas.


Nota: 4.5/5 Lágrimas


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