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Desconforto, neurose e ironia no cinema surreal de Kaufman

Crítica: Estou Pensando Em Acabar Com Tudo (2020)

Arthur Pereira


Estou Pensando em Acabar com Tudo é baseado no livro homônimo de Iain Reid e a história parte de uma jovem que vai conhecer os pais do namorado em uma fazenda remota. Entretanto, ao mesmo tempo que ela dá esse próximo passo no relacionamento, suas dúvidas sobre o que sente em relação ao namoro crescem, atestando constantemente a frase referenciada no título.


É importante ressaltar que esse novo lançamento da Netflix é uma miscelânea de diversos gêneros cinematográficos, incluindo thriller e horror; entretanto, o surrealismo neurótico e introspectivo encontrado nessa e em outras obras escritas pelo diretor e roteirista Charlie Kaufman é o que sobressai na obra. Isso pode decepcionar alguns espectadores que esperam ter uma experiência semelhante à proporcionada pela nova corrente de filmes de terror psicológico de Ari Aster e Robert Eggers, por exemplo.


O uso da proporção da tela diferenciada (a janela clássica em 4:3), lentes grandes angulares e movimentos de câmera horizontais ajudam na construção da atmosfera de estranheza. Łukasz Żal (diretor de fotografia de Guerra Fria, de Paweł Pawlikowski, um dos filmes mais belos dos últimos anos) entrega mais um trabalho lindíssimo, se firmando como um dos maiores profissionais da área na atualidade.


As atuações travam e possuem gigantescas amplitudes de emoção, configurando uma realidade antinatural correspondente ao próprio texto interpretado. Jessie Buckley (com destaque para as potentes narrações em off) e Jesse Plemons entregam atuações consistentes, mas confesso que durante toda a rodagem fiquei imaginando como Jack teria sido interpretado por outro ator se o destino não tivesse sido tão cruel com o lendário Philip Seymour Hoffman. Toni Collette e David Thewlis também são efetivos em provocar o máximo de desconforto possível.


Infelizmente, alguns pontos da narrativa são esquecidos pelo roteiro (como o balanço conservado em uma casa abandonada e as ligações recebidas por Cindy) e, propositalmente ou não, enfraquecem o que poderia dar mais força ainda ao filme. Ademais, o longa-metragem enfrenta inconstâncias de ritmo na montagem que colocam em dúvida até onde o diretor tem controle do projeto e da mensagem que quer passar.


Todavia, rever o filme, ler o livro que o inspirou e adentrar nas obras autorreferenciadas no longa - como a filmografia de Robert Zemeckis, o legado de William Wordsworth, o longa A Woman Under the Influence, de John Cassavetes, e o musical Oklahoma!, escrito por Rodgers and Hammerstein - podem tornar a experiência ainda mais interessante devido ao riquíssimo e intelectualizado subtexto composto por Kaufman.


Estou Pensando em Acabar com Tudo com certeza vai dividir muito opiniões e mesmo não sendo meu projeto favorito idealizado por Kaufman, já apresenta uma interessante evolução em sua carreira como diretor. Após Synecdoche Nova York (2008) e Anomalisa (2015), o cineasta mostra novamente sua incrível capacidade de escrever um texto não linear, irônico, autoconsciente e inovador, ao mesmo tempo que constrói imagens oníricas e belíssimas.


Como dito no próprio filme “Eu acho que é isso que se espera quando alguém escreve um poema. Alguma universalidade em específico”. Essa é uma das melhores definições possíveis de arte e Kaufman sabe muito bem disso.


Nota: 4/5 Lágrimas


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