Crítica: Servant (2019-)
Gustavo Fernandes
De tempos em tempos, o cinema de terror busca reinvenção na subversão. Dessa forma surgem os diversos subgêneros que hoje conhecemos, marcados por traços característicos bem definidos - na maioria dos casos. No final dos anos 90, o cinema de M. Night Shyamalan ascendeu e arrebatou o público do gênero - na época, badalado por slashers advindos da safra de Pânico (Scream, 1996). O bem-sucedido terror-dramático-fantástico de O Sexto Sentido (Sixth Sense, 1999) abriu as portas para outros filmes semelhantes, assim como para a própria carreira de Shyamalan - marcada por constantes flertes com fantasia e, frequentemente, pela bizarrice.
Shyamalan assina a produção executiva e a direção de dois episódios de Servant, série original do Apple Plus lançada em 2019. Criada por Tony Basgallop, a série apresenta uma premissa tão bizarra quanto as que estamos acostumados a ver no cinema de Shyamalan: um casal que acabou de perder o filho ainda bebê o substitui por um boneco. A substituição é realizada pelo pai, objetivando amenizar o luto da esposa. Se já não fosse estranho o suficiente, as coisas ficam ainda piores quando a mãe resolve contratar uma babá para cuidar da “criança”. Quando a enigmática cuidadora chega à residência, o boneco se transforma em um... bebê de verdade! Isso mesmo: o boneco desaparece e, em seu lugar, surge um bebê de carne e osso. A babá, no entanto, age naturalmente desde que chega à residência, como se nada de estranho tivesse acontecido.
A princípio, a série acompanha principalmente o ponto de vista de Sean, o pai intrigado e profundamente incomodado pela presença de Leanne, a babá aparentemente responsável pela “ressureição” do filho. Durante a primeira metade da temporada, o espectador não tem contato direto com os motivos pelos quais o marido resolveu utilizar um boneco como filho. Com o tempo, no entanto, a série vai desvelando as engrenagens por trás dessa substituição, e passando a flertar cada vez mais com o fantástico e o sobrenatural. É interessante como Sean é constantemente pressionado pelo enredo: ele não pode demitir ou confrontar Leanne, pois ela acaba se tornando a “queridinha” da esposa, assim como não pode revelar a verdade sobre a “ressureição” do filho, pois isso “ativaria” o luto da amada.
Superficialmente, é possível dizer que trata-se de uma premissa de minissérie, pouco passível de desdobramentos suficientemente interessantes dentro desse mesmo contexto após o fim do primeiro ano. E, de fato, Servant explora tudo o que pode explorar dentro do cenário que apresenta na primeira temporada. Ao fim dos 10 primeiros episódios, não resta dúvida: apesar de contar com um final “aberto”, todas as respostas que poderiam ter sido dadas ao espectador já foram entregues. O segundo ano da série, já confirmado pelo Apple Plus, será absurdamente distinto da temporada de estreia, haja vista o ambicioso e perigoso desfecho de seu episódio final.
Ao longo dos primeiros episódios, acompanhamos a crescente desconfiança de Sean em relação à misteriosa Leanne - encarnada de forma passiva e completamente contida por Nell Tiger Free. Quem assume a racional persona de Sean é Toby Kebbel - exitoso ao adentrar a gradativa espiral de desconfiança de seu personagem. Já a doce Dorothy ganha vida através de Lauren Ambrose - extremamente competente ao assumir a frágil inocência de sua personagem. Outro eixo de perspectiva imprescindível para o funcionamento da série é Julian, irmão de Dorothy encarnado por Rupert Grint. É possível dizer que ele e Sean são os únicos personagens verdadeiramente racionais e conscientes da família. Afinal, não conhecemos Leanne e suas verdadeiras intenções: tudo o que ela faz soa excessivamente paciente e resignado. Não à toa, a personagem é extremamente religiosa.
Destarte, infere-se que Servant possui uma premissa instigante e bem conduzida, mas que também possui nítidas limitações narrativas. O que poderia ser uma bem-sucedida minissérie corre riscos de sucumbir à mediocridade - mas esperamos que isso não aconteça. Marcada por uma alternância pontual de pontos de vista, a série é paciente ao destrinchar o ambiente familiar em que se desenrola, caminhando em um ritmo praticamente ideal. Mesclando dramas pessoais à fantasia sob uma enervante atmosfera de suspense, a série muito se assemelha às já clássicas tramas de Shyamalan, reconhecendo, do início ao fim, o charme do “esquisito”.
Nota: 4/5 Lágrimas
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